terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

ENSAIO: Venezuela Bolivariana, 2009.

Por Leonardo Fernandes. Caracas, 24 de fevereiro de 2009.
Na manhã do domingo, 23 de novembro de 2008, alguns estrangeiros colocaram no ar a Radio Venezuela online, emitindo notícias, debates, resultados das eleições regionais para os 22 estados mais o Distrito Capital e os 335 municípios do país. Essas eleições marcaram o processo eleitoral com maior participação da população apta a votar, uma vez que o voto na Venezuela é facultativo, chegando à marca dos 60% de participação do eleitorado.

Apesar das eleições na Venezuela serem totalmente eletrônicas, o sistema é um pouco diferente do Brasil, na medida em que ao votar na urna eletrônica, esta emite um comprovante que deve ser depositado em uma urna convencional para que os votos possam ser comparados durante a apuração, como uma forma de garantir a integridade do processo.

O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), partido do presidente Hugo Chávez ganhou 79% prefeituras disputadas, e confirmou presença nos próximos quatro anos em 17 governos dos 22 estados.

A oposição venezuelana saiu comemorando desse processo. Apesar de terem sido praticamente massacrados, tanto no número de votos como no total dos cargos em disputa, os candidatos opositores ao governo Chávez e ao processo bolivariano ganhou cinco importantes governacões, como o estado de Zulia, onde se concentra a maior parte do petróleo venezuelano, principal produção nacional e peso pesado na balança comercial da Venezuela; o estado Táchira, fronteira com a Colômbia e uma região com forte presença de paramilitares; e os estados de Carabobo e Miranda, onde era anteriormente governado pelo PSUV, além do estado Nueva Esparta, mais conhecido como Isla Margarita.

A grande surpresa, e talvez a maior perda, foi para a Alcaldia (Prefeitura) Mayor de Caracas, uma espécie de governo para o Distrito Federal, ou Distrito Capital, como se chama por aqui. A cidade de Caracas é composta por cinco municípios: Libertador (mais populoso, tradicionalmente chavista, que saiu vitorioso o PSUV nas eleições com o candidato Jorge Rodríguez), Chacao, El Hatillo e Baruta (tradicionalmente da direita) e o município de Sucre, o mais pobre do Distrito Capital, onde se situa o maior complexo de favelas da América Latina, conhecido como Petare; antes reduto do chavismo, hoje, determinante para a derrota na Alcaldia Mayor de Caracas.

Apesar da comemoração da oposição, o elemento abstenção foi o mais importante para definir novas estratégias para o processo bolivariano. A apatia política foi em dezembro de 2007 o principal motivo da derrota do referendo de aprovação da reforma constitucional, quando a oposição venceu por uma diferença de pouco mais de 100 mil votos, 2% do total. Naquele momento, a abstenção ao voto atingiu a marca dos 43%, reduzida a 39% nas eleições regionais de 2008. Nessa ocasião, o Partido Socialista recuperou mais de um milhão de votos dos que faltaram para a aprovação da proposta de reforma constitucional em menos de um ano.

A oposição também cresceu. Como parte do processo democrático, e resultado dele, aliado a uma intensa campanha midiática, aqui chamada de “guerra”, a oposição teve um tímido crescimento de 300 mil votos.

Com uma recuperação massiva do eleitorado, e uma crise econômica a ser enfrentada, temida por suas possíveis dimensões, poucos dias depois das eleições regionais, o presidente Hugo Chávez, também presidente do PSUV anunciou que enviaria à Assembléia Nacional um projeto de emenda constitucional com o propósito de ampliar os direitos políticos e excluir barreiras nos critérios de elegibilidade do país.


O Projeto de Emenda

Segundo a Constituição Bolivariana aprovada em 1999, logo da chegada de Chávez na presidência, qualquer modificação ao projeto original ou projeto de lei que interfira na Carta Magna deve passar por uma consulta popular aprobatória, distinto, por exemplo, do modelo de democracia representativa do Brasil, onde as mais de 60 emendas à Constituição Nacional foram todas aprovadas dentro do Congresso Nacional e Senado.

Já nos primeiros dias de 2009, foi apresentado à Assembléia Nacional da Venezuela o primeiro projeto de emenda constitucional ao artigo 230, que se referia à possibilidade de postulação à reeleição, indefinidas vezes, apenas ao cargo de Presidente da República. Depois de muita discussão e forte ataque da oposição, foi apresentado ao CNE, no dia 16 de janeiro, o projeto modificação de cinco artigos (160, 162, 174, 192 e 230), todos relativos aos cargos de governador dos estados, Conselho Legislativo (Deputados Estaduais e Vereadores), prefeitos e presidente da República. A modificação à constituição possibilitaria que em qualquer desses cargos, todos eleitos através do voto, qualquer pessoa que cumpra com os critérios de elegibilidade, como idade, nacionalidade, etc., possa postular-se a esses cargos por indefinidas vezes, ainda que de forma sucessiva.

2009 começou vermelho pelas ruas do país. Primeiro foi a coleta de assinaturas para a aprovação da convocatória do referendo constitucional, importantes para que o CNE convocasse para o dia 15 de fevereiro o referendo aprobatório.


A campanha

A campanha pelo “sim” à emenda constitucional chegou de cores novas, reforçada por uma publicidade inovadora, mais ainda concentrada na figura do presidente Chávez e num forte debate sobre a continuidade do projeto bolivariano, suas missões, e como bem definiu o próprio “Comandante”, a definição do seu destino político, e do futuro do país. Vale lembrar que, sem a aprovação da emenda, em 2013 o presidente Chávez deveria deixar o governo quando houvesse novas eleições para presidente, já que o atual texto da Constituição só permite a reeleição por uma vez e nada mais.

O “Bloco do Sí” contava ainda com a mobilização do Partido, o PSUV, que possui mais de cinco milhões de afiliados, centenas de “batalhões” de campanha que encheram as principais avenidas do centro de Caracas no ato de encerramento de campanha do dia 12 de fevereiro. Nesse dia, a cor que prevaleceu pelas ruas foi o vermelho.

No discurso final do ato, o presidente Chávez falou uma vez mais da continuação dos projetos da Revolução Bolivariana, denunciou as práticas dos governos opositores estaduais que fazem linha dura contra as “missões” (projetos sociais destinados principalmente à saúde e educação), e chamou os venezuelanos a comparecerem às urnas no dia 15 e votar pelo “sim”.

Mas a oposição trabalhou duro. Sem muitas novidades, com uma campanha bastante agressiva, houve estudante chamando a “incendiar Caracas”, como de fato o fizeram, houve reunião em Porto Rico com “governos lá de cima”, denúncias de fraude, enfim, um verdadeiro circo dos horrores pelo “não”. Mas algumas dessas coisas valem à pena falar um pouco mais.

Na sexta-feira 23 de janeiro, estudantes da Universidade Central, a mais tradicional da Venezuela, e a maior até a criação pelo governo Chávez da Universidade Bolivariana em 2005, e de grande maioria da oposição, resolveram fazer barulho. Foram pras ruas, queimaram pneus, ameaçaram com bombas e armas fogo e gritavam que iam incendiar Caracas. Durante toda a campanha, esse “movimento estudantil” desorganizado e despreparado foi usado pela oposição para criar na Venezuela um clima de instabilidade antes das eleições. Mas o caso mais famoso mesmo foi outro...


O “Pacto de Porto Rico”

Para começar a falar sobre o que ficou conhecido como “Pacto de Porto Rico”, convém voltar um pouco mais na história recente da Venezuela.

Alberto Frederico Ravel. Esse foi um dos nomes mencionados pelo serviço de inteligência da Venezuela como participante de uma conspiração que visava o assassinato do presidente Chávez e um golpe de estado no dia 11 de setembro de 2008.

Frederico Ravel é um dos mais importantes empresários do ramo das comunicações, dono do Canal Globovisión (qualquer semelhança não é uma mera coincidência, como veremos logo mais), hoje, principal canal aberto de televisão opositor ao governo Chávez. Foi a Globovisión que, durante o golpe de estado que durou dois dias em abril de 2002, preencheu sua programação com desenhos animados Tom & Jerry e outros programas de entretenimento para manter a população desinformada com relação aos acontecimentos políticos daqueles dias.

No dia 9 de janeiro, Ravel, na companhia de outros quatro dirigentes políticos da oposição, Julio Borges (dirigente do partido Primero Justicia), Henry Ramos, Luis Planas (secretario geral do Copei) e Omar Barboza (presidente do partido Un Nuevo Tiempo) se reuniram na cidade de San Juan, em Porto Rico, território norte-americano, com representantes do governo estadunidense. O motivo? Financiamento para a campanha pelo “não” no referendo constitucional de 15 de fevereiro. Segundo o site de notícias Aporrea.org, “a reunião havia sido organizada pelo encarregado de negócios da Embaixada dos Estados Unidos em Caracas, John Patrick Caulfield”, e os investimentos chegavam a três milhões de dólares para a campanha.

O caso do “Pacto de Porto Rico” ficou conhecido depois que o jornalista Pedro Carvajalino da Ávila TV, televisora alternativa que faz parte do Sistema Público de Televisão e Rádio da Venezuela, realizou uma reportagem no Aeroporto Internacional logo da chegada do grupo do tal encontro. No vídeo, o presidente da Globovisión se altera com o jornalista ao ser chamado de “palangrista”, termo utilizado para definir jornalistas que vendem informação falsa com o objetivo de manipular opinião. (O vídeo pode ser visitado pelo site Aporrea.org, ou pelo link http://www.aporrea.org/oposicion/n126864.html)

A relação entre a oposição Venezuelana com organizações gringas e com o próprio governo norte-americano já é uma velha conhecida, desde o golpe cívico-militar de 2002 até os recentes processos eleitorais que viveu o país, como muito qualificadamente expõe a escritora Eva Golinger nos livros “O Código Chávez” e “Bush vs. Chávez”. No segundo, Golinger denuncia uma série de relações entre instituições norte-americanas, como a NED (Fundação Nacional para a Democracia), e principalmente o alto mando do governo estadunidense com organizações opositoras Venezuelanas, como a Súmate, associação civil “em defesa dos direitos eleitorais”, que desempenha papel importante no financiamento das campanhas opositoras ao governo Chávez. Não somente essa relação, mas uma série de outras intervenções norte-americanas em diversos momentos da recente história da revolução bolivariana.


O dia das eleições

O domingo, 15 de fevereiro começou cedo tanto para os chavistas quanto para os “escuálidos” (termo utilizado pelos revolucionários para nomear a oposição). Na madrugada do sábado para o domingo, um grupo ainda não identificado pela polícia, lançou duas bombas molotov na Escola de Trabalho Social da Universidade Central de Caracas e queimou parte da sede do Centro de Estudantes, deixando escrito na fachada da escola as consignas “No al fraude, no es no” (“no es no” que quer dizer não é não, foi a palavra de ordem da oposição durante toda a campanha pela emenda constitucional).

Pouco antes desse ocorrido, às 3 horas da madrugada do dia 15 já se pôde escutar a corneta indicando que Venezuela se preparava para um dia longo. Às 8 da manhã, 9:30 horário de Brasília, foram abertos os mais de 11 mil centros eleitorais do país, 100% eletrônico, enquanto milhares de venezuelanos e venezuelanas estavam mobilizadas a trabalhar nas mesas de votação, e cerca de 100 observadores internacionais circulavam por todo o país, conferindo de perto o processo, que segundo opiniões, representa um dos mais democráticos e seguros do mundo.

Todos os batalhões do partido estiveram mobilizados todo o dia nas ruas, chamando o povo a votar, a “participar da grande festa da democracia participativa e protagônica” que vive o país, como definiu o presidente Chávez.

Nesse domingo, por questões externas, a Radio Venezuela não foi pro ar. Fomos pra rua.

Às 12:54, chegou ao colégio Manuel Palacio Fajardo a caravana presidencial acompanhando ao presidente Hugo Rafael Chávez Frías que vota precisamente nesse centro de votação no bairro 23 de Enero, um dos mais populares da capital venezuelana. A caravana contou com a presença de Aristóbulo Isturiz, figura célebre do chavismo; Jorge Rodríguez, ex vice-presidente da república e atual prefeito do município de Caracas; Juan Barreto, ex-prefeito do Distrito Capital; e Jesse Chacón, Ministro de comunicação. O presidente Chávez chegou às 12:56 acompanhado das filhas e netos e não demorou mais de dois minutos para entrar. Desde dentro do centro de votação concedeu uma entrevista coletiva à imprensa nacional e internacional. Em seu pronunciamento, o mandatário fez uma saudação aos mais de 500 venezuelanos e venezuelanas que esperavam do lado de fora e destacou a importância dessa consulta popular nos marcos do que ele qualificou como "uma nova doutrina constituinte na América Latina", ressaltando os processos irmãos no Equador e Bolívia. Além disso, o presidente recordou que pela primeira vez na história da Venezuela, uma mudança à Carta Magna se faz através de uma consulta popular.

O presidente Chávez chamou o povo a votar, e manifestar sua vontade individual, que como coletivo representa a vontade soberana do povo.

"Que todos respeitemos a vontade soberana do povo. Iremos reconhecer seja qual for o resultado anunciado oficialmente pelo CNE (Conselho Nacional Eleitoral)". Essas foram as palavras do presidente, num chamado à oposição para o reconhecimento pacifico dos resultados.

Ao ser questionado sobre construir pontes e diálogos com representantes da oposição, Chávez disse que sempre esteve disposto a dialogar, desde que se mantenham três condições fundamentais: o respeito à constituição, respeito às leis e à vontade do povo. "Não cheguei aqui para trair o povo. Não farei acordos com a burguesia porque não irei trair a vontade soberana do povo", disse o presidente.

Uma representante dos meios alternativos e comunitários da Venezuela perguntou sobre a campanha dos "3 Rs" do início de 2008 – revisão, retificação e reimpulso – e sua aplicação aos meios de comunicação em geral. Chávez reconheceu que existem falhas no trato aos meios alternativos, mas que o processo ainda está constantemente sob ameaça dos principias meios de comunicação que, não só representam um desequilíbrio na transmissão de informação, mas que continuam seu chamado à violência e a adoção da mentira como política na "sua tentativa de enlouquecer o país". Destacou que a crítica é necessária, chamando até mesmo àqueles que compõem seu círculo mais íntimo a criticarem a ele e ao governo, mas aplicando também a autocrítica: "nada melhor que o pensamento crítico para avançar a consciência política de um povo", ratificou.

Em resposta a um comentário sobre a declaração de Barack Obama, um dia antes, igualando Venezuela a Cuba, reivindicou as reflexões de Fidel Castro sobre o lugar da Venezuela como vanguarda no processo atual que vive o Continente. Reafirmou que é um construtor de pontes e que a Venezuela está pronta para normalizar as relações com Estados Unidos sempre quando baseadas no respeito à soberania venezuelana, na liberdade, no processo que esta nação atravessa e em seu povo; ainda que acredite que “Obama deva estar muito ocupado com a crise econômica para tratar disso agora”.

Pouco depois das 3:30 da tarde, 5 horas horário de Brasília, o comando juvenil juntos aos esportistas do Bloco do Sim fizeram uma rodada de imprensa liderada por Hector Rodríguez, dirigente da juventude do Partido Socialista. Entro o comunicado oficial e as respostas a algumas perguntas de jornalistas, Rodríguez denunciou um ato de violência contra um filho de um deputado da Assembléia Nacional enquanto votada, e informou que às 14 horas, mais de 50% dos eleitores já haviam confirmado o voto. No pronunciamento, ainda fez um chamado à oposição para aceitar os resultados e a decisão da maioria, e ao povo para que se mobilize até que último eleitor exerça seu direito ao voto. “o processo encerra quando o último vote”.

Mas ou menos a esse tempo, Globovisión colocava no ar a imagem do governador do estado de Anzoátegui, Tarek Willians Saab, do PSUV, que rasgou o comprovante de votação depois de ter saído “nulo” e solicitou o direito de votar novamente (o sistema de votação eletrônico na Venezuela se difere do sistema brasileiro porque depois de votar na urna digital, é impresso um comprovante que em seguida deve ser depositado numa urna de contagem manual para serem comparados com os votos registrados na máquina). A imagem foi repetida ao longo da programação de Globovisión com o título “você viu?”.

A oposição nesse momento inicia uma série de denúncias de fraude, dizendo que não reconheceriam os resultados do processo e chamando à mobilização violenta. A denúncia de fraude é um instrumento da oposição para mobilizar grupos violentos que saem às ruas montando “guarimbas” (uma espécie de barricadas) e causando um clima de instabilidade. No referendo pela reforma constitucional de 2007, durante todo o dia eleitoral, a oposição fez uma série de denúncias parecidas. Quando os resultados demonstraram a derrota do chavismo, os mesmos denunciantes saíram a reconhecer o processo e legitimar a autoridade do Conselho Nacional Eleitoral.

Às 4:30 da tarde, uma hora e meia antes do encerramento da votação, foi a vez da diretiva do Partido Socialista Unido da Venezuela prestar uma rodada de informações à imprensa. O Ministro da Economia e Finanças, Alí Rodríguez, denunciou que a oposição chamava à reação, incitava a violência numa denúncia de fraude sem fundamento. O ministro esclareceu que o problema apresentado com o governador de Anzoátegui havia ocorrido em algumas poucas outras mesas de votação e que o CNE já possuía os mecanismos para que isso não interferisse nos resultados daquela jornada. No pronunciamento bastante otimista, Rodríguez disse pela primeira vez que existia uma “tendência irreversível” para a vitória do “sim à proposta de emenda constitucional.

Pouco mais tarde foi a vez do chefe do Comando Simón Bolívar e também prefeito do município Libertador, de Caracas, Jorge Rodríguez. Logo de encerrado o processo eleitoral às 6:10 da tarde, fez um chamado à calma, ao respeito aos resultados e deixou claro que o PSUV saía satisfeito desse processo e tinha muito que comemorar. “A gente se encontra lá”, disse o prefeito fazendo referência ao Balcão do Povo, no Palácio de Miraflores onde tradicionalmente se concentra a massa chavista para celebrar.

A oposição se pronunciou tarde. Pouco depois do fim da votação, um líder da oposição fez um chamado à tranqüilidade, afirmou que a oposição reconheceria os resultados, mas disse que ainda era cedo para comemorações.

Às 21:30, a presidenta do Conselho Nacional Eleitoral, Tibisay Lucena, anunciou o primeiro boletim oficial das eleições com 94,2% dos votos totalizados. A opção pelo “sim” contabilizou 6.310.482 votos, frente 5.193.839 da opção “não”, 54,85% contra 45,14% respectivamente.
Foi um dos processos eleitorais de menor abstenção nos últimos dez anos com 29,67%, ou seja, 11.710.740 pessoas, das 16.767.511 inscritas no registro eleitoral compareceram às urnas no último domingo 15 de fevereiro, aprovando a Emenda Constitucional que significa para o povo, a continuidade do processo e das políticas sociais do governo Chávez; para a oposição, a perpetuidade de “um ditador”, que proíbe a liberdade de expressão, e cessa as liberdades políticas, mas convoca uma eleição para definir seu futuro político e o futuro político do seu país. Uma contradição intrínseca.

E “pra lá” foi o povo. Do Balcão do Povo, o presidente Chávez saldou a uma multidão que o esperava afora. O “Comandante” fez um discurso de mais ou menos uma hora, com o qual “se consagrou” diante do povo venezuelano à sua disposição para levar à frente o projeto bolivariano para Venezuela e toda América Latina. Enquanto a oposição dormia calada, a festa da democracia se prolongou por toda a noite nas ruas de Caracas. Para alguns, começava a “semana do amor”, como disse Chávez. Para outros, começava mais um ciclo do processo revolucionário desse país caribenho.

ARTIGO: A Globo mente!



Por Leonardo Fernandes. Caracas, 24 de fevereiro de 2009



O presidente Chávez já havia entrado à escola pública no bairro 23 de Enero para votar. Enquanto realizava uma entrevista coletiva dentro do centro de votação, afora, mais de 500 pessoas o esperavam sair. Estávamos em uma área reservada para fotógrafos e jornalistas esperando para registrar a saída do presidente quando vimos ao nosso lado, um jornalista da Rede Globo se preparando para gravar.

Sugerimos ao jornalista que nos tomara uma declaração. Estávamos em um grupo de brasileiros que vivem na Venezuela e tínhamos uma opinião sobre todo o processo na Venezuela, não somente o processo eleitoral daquele domingo, senão sobre o processo político que vive o país. O jornalista, que mais tarde soube que se tratava do “novo correspondente da Rede Globo para América Latina” Carlos de Lannoy, respondeu algo com desdenho e desinteresse por uma declaração do grupo. – Claro que não, - comentei – as fontes já estão marcadas e o discurso já está pronto pra vender. No bom espanhol venezuelano, um “palangrista” (termo utilizado para designar um jornalista que vende um conteúdo noticioso com mentiras no sentido de manipular a opinião pública).

O funcionário da Globo continuou o seu trabalho e realizou uma tomada dizendo que o referendo se tratava da aprovação da reeleição indefinida do presidente Chávez. Um discurso recorrente da oposição, e obviamente dos meios de comunicação privados da Venezuela, que representa uma forte contradição. Uma vez que a emenda constitucional permite a postulação a diversos cargos públicos além do cargo de presidente da república, e sempre pela via da consulta popular, seria correto dizer que a oposição venezuelana admite que o presidente Chávez será sempre a única opção do povo. Seria admitir a derrota para sempre da sua defesa política para o país. O que não é bem verdade.

A estratégia dos meios de comunicação privados da Venezuela, assim como internacionais, como a Rede Globo no Brasil, é para que todo processo de discussão democrática, participativa, que vai em contra seus projetos políticos, se pareça com uma nascente ditadura. A cada momento que a oposição venezuelana e internacional percebe que se está dando um passo mais adiante na luta do povo venezuelano pela ampliação dos direitos democráticos e construção do socialismo, age com a chamada pelo próprio presidente Chávez, “política de mentiras”.

No vídeo do jornalista da Rede Globo deveria constar um áudio que dizia “A Globo mente!” de dois brasileiros que não conseguiram deixar a mentira ser produzida e vendida ao nosso povo. Seguramente não acabamos com o “palangrismo” da Globo, somente incomodamos algum jornalista que fazia o trabalho sujo dos meios de comunicação privados do mundo que temem o exemplo do povo venezuelano na luta pelo socialismo e, o que comprova que a história segue se construindo através da luta de classes, mas evidente que nunca no povo venezuelano.

Discutimos um pouco com o tal de Lannoy sobre alguns pontos de sua reportagem. Quando fizemos uma breve comparação entre o processo político democrático brasileiro e venezuelano, o jornalista que tinha tanto pra dizer se calou. Dizer que a constituição brasileira já sofreu 62 emendas sem que nenhuma houvesse passado pela consulta popular, deixou o empregado da Globo em má situação. Dizer que a democracia venezuelana garante o caráter participativo ao seu povo, seria exatamente o contrário do que ele tinha que dizer em seu trabalho. O discurso que a Globo necessita vender é que sempre será o Chávez um ditador, que as liberdades são cerceadas e que não vale à pena o povo brasileiro seguir o exemplo histórico de luta do povo venezuelano.

O debate sobre a comunicação no Brasil é assunto que incomoda a muita gente importante. O que na Venezuela comumente se chama de “guerra midiática”, os empresários do setor já declararam vitória faz algum tempo. Na história da comunicação no Brasil, o caminho foi só avançando para a consolidação de impérios midiáticos que há influenciado a opinião publica e jogado com as relações de poder em todos os seus níveis.

No documentário do canal inglês BBC titulado “Muito além do cidadão Kane”, a tv inglesa entrevistava o então candidato Lula, derrotado nas eleições de 1989. Muito se falou sobre o papel que jogou a empresa de comunicação brasileira para derrotar o favoritismo que vinha tendo o candidato Lula até os últimos dias de eleições. Edições de debates, propaganda no jornalismo, análises tendenciosas, tudo isso foi usado para que Fernando Collor de Melo chegasse a presidência da República naquele ano. “Democratizar a comunicação”, essa foi a meta apresentada pelo candidato Lula em 1989. Vinte anos depois e com Lula no governo há 6 anos, é importante pensar no que mudou, e no que venha a ser um processo de democratização da comunicação, quais são suas experiências históricas.

Voltando à Venezuela, é importante pensar em porque, para a oposição venezuelana liderada pelos veículos de comunicação privados e também para a Rede Globo, a “política de mentiras” é tão importante e tão vital. O medo: democracia.

Há quem diga que devemos socializar os meios de comunicação. Estaremos sempre de acordo com isso, quando pensarmos em um processo socialista materializado no fim da propriedade privada dos meios de produção, o que inclui a comunicação social. Acontece que o processo político na Venezuela, ainda apresenta o socialismo como alternativa ao capitalismo, entendo, portanto, que a socialização dos meios de produção ainda não é um feito, apesar do avanço com a nacionalização de setores importantes da economia, como foi o caso da petroleira PDVSA em @@@@. Isso explica porque na Venezuela, grandes empresas de comunicação ainda operam com grande influencia na formação da opinião pública, pelo grande acúmulo de poder historicamente construído graças à política de comunicação social antes do presidente Chávez. Para minar as estruturas de poder desses grandes impérios midiáticos, uma solução: democratizar a comunicação.

Depois do golpe de 2002, claramente orquestrado por grandes empresas de comunicação, o governo Chávez declarou guerra aos grandes empresários. Naquela ocasião, frente ao total controle que tinham os golpistas de todos os aparatos de comunicação, ocorreu o que o jornalista e professor da Universidade Central da Venezuela e atual deputado na Assembléia Nacional pelo PSUV, Earle Herrera chama de “o povo se fez jornalista”. Não fosse o famoso boca-a-boca, o povo não houvesse logrado uma mobilização em massa e o retorno de Chávez apenas dois dias depois. A partir daí, o surgimento de meios alternativos e comunitários de comunicação foi vigoroso. Herrera, no livro “extravio dos meios”, publicado na série “textos breves” do Ministério das Comunicações da Venezuela, comenta que “os grandes processos de transformação são férteis para este fenômeno”. Esse processo de fomento aos veículos comunitários e alternativos começa a partir da iniciativa da TV Comunitária Catia TV, que exerceu um importante papel durante os acontecimentos de abril de 2002, transformada hoje em uma incubadora de TVs comunitárias em todo o país.

Em 2006, o presidente Chávez anunciou que não renovaria a concessão pública para o canal RCTV, principal canal opositor ao governo Chávez até o último dia em que esteve no ar. A RCTV foi responsável direta na conspiração midiática que proporcionou o golpe de estado em 2002. Desde a saída da RCTV do sinal aberto, o governo vem investindo na criação de meios públicos de comunicação, e incentivado através do Mistério das Comunicações o surgimento de mais de mil veículos livres alternativos e comunitários em todo o país.

A Venezuela hoje possui um Sistema Público de Televisão, que inclui além dos canais institucionais como a ANTV, da Assembléia Nacional, uma agência de noticias, a ABN (Agência Bolivariana de Notícias), VTV (Canal 8), antiga televisora estatal, antes um cabide de empregos, hoje completamente transformada, dotada de uma programação diversificada com programas educativos, de opinião, entretenimento, e os noticiários de maior peso em audiência; a Telesur, canal formatado como uma empresa transnacional-govenamental, que tem 51% de capital venezuelano e o restante aberto aos países que desejem aderir à iniciativa, que até agora são: Cuba, Colômbia, Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Equador e Nicarágua; a Vive TV, outro canal do Sistema Público de TV venezuelano que funciona como uma TV educativa, porém, com uma linguagem e uma programação super avançada em relação às TVs educativas do Brasil; e por fim a Ávila TV, canal alternativo que apresenta debates importantes e discute temas políticos com uma linguagem voltada para a formação de um público jovem.

Toda a estratégia que vem fazendo no sentido de democratizar o acesso à comunicação vem minando os espaços dos grandes empresários na Venezuela, que temem algum dia não exercer a influencia que jogam no país, e que um dia possam vir a desaparecer no contexto de uma comunicação possível de ser exercida pelo próprio povo. “Não vejam TV, façam TV”. Assim deve ser. O medo toma conta dar redações dos impérios das noticias. O medo da democracia, do socialismo, do povo protagônico, que somente ele é capaz de mover a história na sociedade de classes.

Quando disserem censura, pensemos liberdade. Quando disserem ditadura, pensemos democracia. Quando disserem não, gritemos socialismo! Porque “a Globo mente!”.